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  • Marcos Hinke

BLACK MIRROR - The Entire History Of You: Anotações e Aprendizados tirados do roteiro


Ler roteiros é fundamental para quem quer ou para quem já trabalha com roteiros. Não há nada melhor para inspirar as sinapses criativas do que observar o trabalho daqueles que dominam a técnica com maestria.

E se há os casos de alguns roteiristas famosos que renegam a leitura, há também os daqueles que reconhecem com humildade o quão rico o processo de leitura pode ser. A leitura, e mais precisamente o estudo de roteiros, ajuda a aumentar seu repertório, definir seu estilo, entender a aplicação de diferentes técnicas, e acima de tudo pensar o impacto de escolhas artísticas na sua trama. Alguns roteiros quando estudados do começo ao fim são verdadeiras aulas. Mas é um trabalho minucioso. Você não deve só ler, mas esmiuçar o roteiro.

Existe um famoso exercício que os roteiristas americanos sugerem chamado Script Analysis ou Breakdownn (não confundir com Script breakdown, ou a análise técnica, uma ferramenta do Assistente de Direção), que é redigir uma descrição cena a cena do roteiro. Gostaria hoje de dividir com vocês uma técnica própria, bem anárquica, mas que me ajudou muito no começo em roteiro. A diferença principal com um Breakdown é que meu foco não é descrever o que acontece, mas COMO acontece. Minha intenção é compreender que técnicas e mecanismos foram utilizados pelo roteirista para expor seu universo, para definir as relações entre os personagens, para criar emoções, para aumentar o potencial dramático,etc.

Às vezes são só notas e as vezes uma observação mais detalhada. Resumidamente é pegar tudo que você estudou e estuda de roteiro e procurar na prática como tudo isso foi utilizado em um roteiro que você admira ( acho importante essa relação de ser algo que dialogue com você).

O estudo que eu irei postar aqui foi feito em 2014 e eu não mudei muito da parte textual para essa publicação, então vai abaixo quase que como no meu original. Pode parecer uma bagunça para alguns, mas tenha em mente que isso foi um exercício pessoal, com uma série de fluxos de pensamentos para me ajudar a identificar técnicas de construção narrativa.

Não postarei o estudo inteiro para não me estender em demasia, vai até pouco depois do fim da primeira parte, uma indicação do próprio roteiro. Fora isso é para mera referência, não existe jeito certo ou errado de fazer esse exercício, a proposta aqui é só mostrar uma possibilidade rica de aprendizado.

Escolhi compartilhar o estudo de um dos meus episódios favoritos da série Black Mirror. Justamente por ser uma série antológica, a cada episódio é necessário estabelecer as regras do universo (apesar de similaridades) e novos personagens. O episódio escolhido é Toda a História de Você.

O roteiro (em inglês) pode ser encontrado aqui. Recomendamos assistir ou ler (ou os dois) o episódio para uma melhor compreensão. E os trechos presentes nesse post foram traduzidos para melhor entendimento de todos.

É isso, boa leitura e bora estudar e ler roteiro!

CENA 1- Na entrevista

Inicia com breve descrição dos personagens em cena. É uma reunião, mas inicialmente não compreendemos bem a situação. O POV de Liam logo no início da primeira cena já sugere que ele será o personagem principal. As falas dos advogados são prolixas, vagas e pretensiosas, tom passivo agressivo. Liam responde pouco , monossilábico. O público deve ficar sabendo que Liam está sendo avaliado através de uma explicação de Max sobre os motivos da avaliação.

A cerveja é uma ação para definir o clima de avaliação e testes (afinal, em uma entrevista de emprego, ele deveria aceitar/beber a bebida ou não?). Liam demonstra vulnerabilidade e vacila no teste, tenta se corrigir forçando casualidade, mas só piora a situação. Na cena final parte disso é editado, e as garrafas de cervejas na mesa já demonstram essa relação de poder entre as partes sem usar diálogos.

CENA 1.1 - A revisão

O roteiro já indica referências visuais do universo e como aquilo é comum para todos. A ação dela procurando a imagem do passado e a ideia de uma imagem antiga com apenas uma pequena diferença em relação ao ponto de vista dela agora ajuda o espectador a entender que aquilo se trata de uma gravação pelo ponto de vista de quem está exibindo o vídeo.

CENA 1.2 e 1.3 - Na entrevista

A sequência da entrevista , que no roteiro tem 6 páginas e um terço, no corte final tem 2 minutos e vinte. As cervejas já estão na mesa (apenas a de Liam aberta e metade cheia), os vídeos não são exibidos na tela. Eles só falam da avaliação em busca do ouro (não existe o vacilo de Liam).

Só existe a questão do processo de avaliação em retrospecto. Os entrevistadores demoram para responder, mas Liam mostra uma dubiedade e receio ao concordar. Eles mencionam o “re-do” e perguntam se não houve nenhuma grande exclusão nos últimos meses. A entrevista acaba. Quase sete páginas editadas e sintetizadas em dois minutos e vinte. A cerveja se mantém na cena, o álcool é importante para o desenvolvimento da história.

Em poucos minutos, já temos pinceladas importantes daquele universo. Não só do aparato tecnológico que permite gravar e reproduzir tudo que as pessoas veêm. Mas também das relações e comportamentos sociais em torno disso.

Uma representação perfeita de que o clássico “Mostre, não conte”, não quer dizer necessariamente não utilizar diálogos. Em uma cena completamente verborrágica, vemos em ações como o aparato de registrar memórias estabelece as relações de poder e neuroses. Um homem em uma entrevista de emprego precisa tomar cuidado com o que faz em sua vida pessoal pois todos os seus dias dos últimos meses serão avaliados pela equipe da empresa que ele pretende trabalhar. Várias questões já ficam no ar aqui: Que tipo de neuras isso cria num indivíduo? Que comportamentos uma pessoa precisa ter? É possível se portar naturalmente em uma vida que pode ser assistida? O que é privacidade? Nesse mundo, as pessoas são donas de sua própria privacidade?

CENA 2 - No taxi

Antes no roteiro vimos outra personagem revendo suas memórias gravadas. Mas como a ação foi cortada na edição, agora não sabemos se só Liam faz isso (antes, poderíamos achar que só Robbie, a entrevistadora, podia fazer isso até Liam fazer também). Ele revisa as memórias, especificamente no momento que pergunta se a companhia está moralmente de acordo com esse tipo de ação. Isso nos indica que revisar as situações que acabou de se passar é um hábito comum nessa sociedade ou que é um hábito especifico de Liam. Um anúncio sobre cheiro e memória começa a passar, uma exposição mais clara do Universo. Memórias agora são produtos em um mercado tecnológico.

Na edição final, o anúncio passa antes de Liam revisar a entrevista. Quando Liam entra no Táxi, os efeitos sonoros e o tipo de porta já nos mostra que não é o mundo presente ou o passado. É o futuro ou um universo próprio. A tela no táxi e a forma de pagamento contribuem para essa conceituação. E o fato do anúncio ter mudado de ordem com Liam revendo as memórias, deixa a associação menos óbvia.

Primeiro, temos uma propaganda sobre memórias sem saber sobre o que se trata. A cena nos convida a tentar decifrar o contexto. Depois vemos o controle remoto nas mãos de Liam e seu acesso às memórias.

O momento que ele revisa é diferente da colocada no roteiro, no episódio é a despedida da reunião. Liam inclusive dá um zoom na cara de Max e um repeat para tentar decifrar sua expressão corporal. ( a mudança é importante para caracterizar que Liam é obcecado por tentar "ler" as pessoas em suas revisões).

No menu de imagens de Liam, existe a informação de quantas vezes aquela imagem foi “revisada”, nesse caso 0. No roteiro, “13 revisões” era mencionado na cena da entrevista, quando Liam exibe sua evolução na carreira. O número de vezes que uma memória é revisada é importante para a história.

Então, até o momento, o roteiro trabalha a questão de memória e seu armazenamento, a sensação de vigília constante fruto disso, ao mesmo tempo que estabelece o primeiro conflito de Liam, sendo entrevistado e se sentindo inseguro e pressionado.

CENA 3 - No aeroporto

A conceituação do universo é expandida através da ação de outros personagens, pelos quais Liam passa. Uma família sendo interrogada e impedida de embarcar por um segurança que analisa uma imagem na tv de um avião de brinquedo, que segundo o guarda “o sistema reconheceu como suspeita”. Agora sabemos que não só as imagens de memórias podem ser acessadas, como podem ser reproduzidas para outros (lembrando que essa indicação foi cortada na sequência inicial). E que também, é uma norma de segurança e vigilância da sociedade e que portanto você é obrigado a fornece-las em algumas situações. Liam é o observador da cena.

Outro segurança pede para Liam reproduzir suas memórias das últimas 24 horas e depois da última semana. Assim, descobrimos que não são apenas as memórias recentes que são armazenadas, e que a tecnologia é utilizada como forma de monitoramento das pessoas sob alegação de medida de segurança.

No roteiro são pouco mais de 10 páginas e no episódio, se passaram quatro minutos e trinta segundos. A sequência da família foi cortada, indo diretamente para Liam passando pelo detector de metais e conversando com o segurança. Vemos no monitor do segurança imagens rápidas da semana de Liam, que incluem um bebê e uma mulher de sua faixa etária, o vídeo no monitor dá uma leve pausa nas imagens e faz uma leitura rápida das faces, essas imagens não são mencionadas no roteiro. No episódio, toda a conceituação do aparato de memórias é apenas por ações e pelo ponto de vista de Liam. A edição é rápida, uma música leve e pra cima cola as sequências. Em quatro minutos e trinta segundos temos a conceituação do universo e apresentação de personagem.

CENA 4– Liam chegando na casa

Externa. Liam segurando uma garrafa de vinho vê pela janela um grupo de pessoas conversando em uma casa que ele está prestes a entrar. Um grupo de amigos íntimos, que segundo o roteiro, tem uma atitude de boemia e não tão suburbana quanto o cenário pode sugerir. Uma das pessoas, Ffion, é apresentada como esposa de Liam.

Liam revisa uma cena de festa passada onde Paul apresenta sua esposa Lucy e filhos, lembrando que se conheceram no casamento de Dublin- uma forma de mostrar que Liam não se lembra o suficiente deles para lembrar seus nomes, o que nos indica que Liam não deve ser tão próximo do grupo de amigos quanto a esposa.

CENA 5 – Festa

Jonas, Jeff e Ffion assistem um playback de Jeff, que comenta o estado do quarto de hotel. Jeff se mostra um homem materialista e mimado e isso é projetado na exigência que ele tem com suas memórias ( fica estabelecido que as vivências agora devem ser ainda mais especiais pela capacidade de registro, porque você poderá rever essa memória pelo resto da vida) . Jonas e Ffion aparentam estar zombando deles e demonstram uma certa proximidade. Agora, está estabelecido que as exibições de memórias também fazem parte da interação social. Ela também é usada como ferramenta para introduzir novos personagens e suas relações. É o álbum de fotos contemporâneo, mas justamente por ser tão banal, só vemos banalidades e obsessões.

Paralelamente, Liam está entrando na casa, sendo recepcionado por Lucy, que não o reconhece imediatamente, e orgulhosamente Liam lembra o nome dela e onde se conheceram.

O roteiro já começa a criar gags com as regras do universo, demonstrando mais uma vez o uso das memórias em interações sociais. A situação reforça a ideia anterior da relação de Liam com aquele grupo de pessoas, ele é o marido de uma das amigas, não faz parte diretamente do círculo social.

O roteiro reforça a intimidade entre Ffion e Jonas e como isso chama a atenção de Liam, nós já sabemos que ele se importa com as expressões corporais das pessoas e tenta lê-las.

Através de uma fala de Lucy, o público fica sabendo que Liam é casado com “Fi”. No episódio, Fi já foi introduzida imageticamente na “revisão” de Liam no aeroporto. No roteiro Fi já é apresentada na descrição como sua esposa.

Adorei a descrição da corporeidade deles, a intenção da cena através de ações “filmáveis”.

Essa ação aprofunda mais a apresentação de Liam. Um roteiro de ficção científica, que fala de um mundo próprio e opressor a sua maneira, agora está caminhando para um conflito de relações íntimas.

Pelo diálogo, Fi não esperava que Liam chegasse a tempo para a festa, o que significa que ela não o esperava. Percebe-se que eles não se comunicam bem, e Liam pergunta pelo filho pelo nome, não expondo diretamente para o público.

Jonas se apresenta para Liam, ele é bem invasivo, interrompe a conversa do casal e toca em Fi ao falar. Fi apresenta Liam a Jeff , então sabemos que eles não se conheciam.

No episódio, a edição vai direto para Jeff, Jonas e Ffion assistindo ao vídeo. Corta para a visão de Liam relembrando quando conheceu Lucy e já batendo na porta. Toda a parte dele observando do lado de fora é gordura. A direção deu uma mudada nas intenções e velocidade da cena.

De volta ao roteiro. Após o momento estranho entre Jonas, Liam e Ffion, Lucy apresenta Collen para o grupo e o assunto sobre a avaliação de Liam vem a tona. Jeff sugere que eles assistam a revisão da avaliação e grupo, Liam fica constrangido e prefere que não. A anfitriã e o marido insistem para que ele passe. Revisar o dia aparenta ser uma atividade social muito comum. Todos começam a ser insistentes, Ffion percebe que Liam está desconfortável e pede para os amigos não insistirem. Jonas intervém na defesa de Liam, tentando ser um cara bacanão, mas soa paternalista . Liam não gosta.

Liam pergunta sobre Jonas para Ffion. Ffion sugere a Liam que eles podem ir para casa se ele estiver cansado. Ele não quer atrapalhar a festa dela, ele diz para ficarem.

No que Ffian se afasta, Liam reassiste o momento que ele chegou e analisa a linguagem corporal dela. Agora temos certeza que Liam é um homem inseguro e paranóico. Ele precisa constantemente revisar como as pessoas agem ao redor dele. O que ela quis dizer com isso?

*Um dia, tenho que voltar e me focar apenas nos diálogos. Uma ótima aula de subtextos e interações constrangidas.

**Uso moderado de termos não fimáveis nessa sequência!

CENA 7 – O jantar

Jonas está contando sobre sua recente separação de sua noiva e sua descrença em relacionamentos ( ótima forma de introduzir um dos temas para permitir que os personagens falem seus pontos de vista). O roteiro faz citações aos olhares de Liam e Ffion sobre o que Jonas fala. Halam, uma nova convidada chega na festa, e o roteiro indica que a anfitriã está tentando ajeitar ela e Jonas.

Jonas continua a discursar sobre relacionamentos, e os amigos o questionam por ter quase se casado. Ele projeta uma imagem de solteirão, que acha casamento uma inutilidade, como casais em algum momento só vão assistir revisões deles fazendo sexo com uma versão mais jovem do conjugue ( isso é um plant) . Jonas faz uma provocação, dizendo que todo mundo faz isso, Hallam responde que ela não, a anfitriã Lucy fala toda empolgada que Hallam não tem um grampo, é clara a empolgação dela ao dizer isso como se ela tivesse convidado uma "pessoa exótica" para a festa. Liam pergunta se foi por uma questão política. O uso do grão (ou o não uso) pode ser ideológico?

Nessa cena temos uma série de enunciados: Jonas reforça a ideia de lembranças com outros parceiros sexuais ( uma nova forma de porno?) e Hallam revela a possibilidade de remover o “grão”. Então o "grão" com a gravação das memória é uma convenção/imposição social, mas não é uma obrigatoriedade.

Halam conta que o grampo foi roubado, provavelmente para ser vendido para um pervertido milionário, considerando ainda que o grão dela não era criptografado. Mais um diálogo reforçando o universo através de ações passadas. Ela diz que depois de uns dias sem, ela gostou e se manteve sem. O que leva para uma conversa como isso está se tornando comum nos dias de hoje, a opção por viver sem o grão.

O roteiro reforça a delicadeza da convivência social, até poucos instantes, Jonas falava de masturbação com naturalidade, mas para projetar uma imagem de cara descolado, e todos podem o perdoar por isso. Coleen diz que não conseguiria viver sem o grão, e as pessoas ficam constrangidas por seu comentário. A conversa indica que as pessoas realmente não sabem mais como é viver sem grão. Para quebrar o silêncio, Paul diz que ia exibir imagens dos últimos encontros da turma, a cena seguinte é a exibição das imagens. Mesmo com as imagens passando na tela, Collen insiste em falar sobre o grão, e como memórias orgânicas são perigosas, que traumas podem ser induzidos por perguntas capciosas em terapias. Hallan diz que se sente mais feliz assim. Collen começa a contar dados sobre o mundo pré-grão, e como mulheres casadas que não tinham gravado a memória de seus casamentos, tinham mais chances de serem infelizes, “memórias orgânicas são armadilhas, com o grão, você tem a verdade”. Aí está a verbalização da questão principal do episódio, se memórias orgânicas são armadilhas, por que suas reproduções não seriam? E acima de tudo, quem quer a verdade?

O roteiro também indica um chaveco de Jeff para com Collen. Na edição do episódio, a maior parte da cena é igual ao roteiro, exceto o final, que corta a parte sobre o mundo pré-grão. Mantendo apenas a fala de Collen sobre traumas podendo ser induzidos, como babás pedófilas que nunca existiram, e Hallan respondendo educadamente que é mais feliz agora. A informação do mundo pré-grão é interessante e pitoresca, mas desnecessária para o entendimento ou o andamento da história, portanto sua retirada no episódio não altera o conteúdo.

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Acho que deu para entender. Nesse estudo, o maior aprendizado é entender como as coisas acontecem, como as cenas são encadeadas e como certas informações são entregues ao público. As escolhas de um bom roteirista nunca são aleatórias. Por isso reforçamos a importância de ler roteiros. Teoria é teoria, bom mesmo é ver a teoria em ação (e melhor ainda praticá-la)!

Boa leitura!!

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