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  • Jaqueline M. Souza

Escaleta: estruturando a história em um roteiro


Da mesma forma que um artista visual pode traçar o rascunho de sua obra antes de colocar a tinta efetivamente na tela, o roteirista também pode passar por estágios de esboçar sua história antes de propriamente escrever o roteiro. Já falamos sobre um desses estágios, o argumento, em um post anterior. Agora, falaremos sobre outra ferramenta/documento essencial ao roteirista, a escaleta.

A escaleta, em geral, vem após a escrita do argumento. Se no argumento a história toma forma, na escaleta o roteiro toma forma. Mais do que pensar os beats, na escaleta se pensa na estrutura, na construção de sequência e cenas. Enquanto o argumento conta O QUE, a escaleta conta COMO.

“A escaleta é um instrumento de visualização do roteiro em seu conjunto, uma espécie de plano de vôo detalhado, cena a cena. A palavra lembra “esqueleto”, e é mais ou menos disso que se trata: as cenas darão carne e sangue a esse esqueleto, que as manterá articuladas. Talvez uma metáfora ainda mais adequada seja um molde externo, espécie de “exoesqueleto” provisório, a ser preenchido com “a carne e o sangue” das cenas, para depois desaparecer. Esse “esqueleto”, entretanto, é temporal, e isso é crucial. Trata-se de planejar o “andamento” da narrativa, e o sentido musical do termo é inspirador para o roteirista” - Manual de Roteiro, ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e TV de Leandro Saraiva e Newton Cannito

A escaleta não tem exatamente um formato padrão, ela prove uma demonstração de como a história irá se devolver, através de cenas ou sequências. Então, o habitual é incluir um cabeçalho e uma breve descrição de cena.

O nível de detalhamento da descrição de cena pode variar de roteirista para roteirista, alguns trabalham com escaleta incrivelmente detalhadas, em que só faltam os diálogos e outros apenas listam beats e situações. O importante é que a escaleta funcione como uma ferramenta de trabalho, auxiliando na escrita do roteiro efetivamente. Uma escaleta bem escrita, ajuda a visualizar importância de cada cena, seu ritmo, qual sua função dentro da macro estrutura, definir o arco dramático dos personagens e subtramas. Já na escrita da escaleta é comum trabalhar com algumas perguntas na hora de montar a estrutura :

  • Qual a importância dessa cena? O que ela revela?

  • Quem deve estar na cena?

  • Essa cena seria mais potente ou alteraria a história se estivesse em outro local?

  • Que cena a antecede e que cena a sucede?

Perguntas como “quando entro na cena e quando saio” ou “qual a estrutura da cena”, ainda não são tão importantes nessa etapa, pelo menos se você não estiver fazendo uma escaleta super detalhada.

Além de todas as vantagens no processo de criação, a Escaleta é quase fundamental em um outro cenário: na escrita coletiva ou em dupla. Quem escreve em dupla sabe como o processo é difícil, até porque nem sempre os dois roteiristas escrevem juntos, muitas duplas trabalham com os roteiristas escrevendo simultaneamente. Assim, a escaleta permite que a dupla ( ou equipe) pense na estrutura da história juntos, já definindo também o tom e estilo, e que dividam as cenas entre si para a escrita.

MÉTODOS

A Escaleta é um documento, mas para se chegar a ela, pode-se utilizar diferentes métodos de trabalhos:

ESCALETA DE UMA PÁGINA

Nos Estados Unidos é comum se trabalhar com a Escaleta de Uma Página, um documento de trabalho do roteirista que inclui de forma bem sucinta, qual a ação da cena e quem está nela. Essa escaleta não costuma incluir cabeçalhos, mas pode incluir uma divisão de atos ou de sequências.

Abaixo, a Escaleta de Uma Página (livremente traduzida) de Peixe Grande de John August

Observe a economia dessa Escaleta: para ilustrarquem está em cena o autor coloca entre parenteses as inicias dos personagens.

ESCALETA DETALHADA

Outros roteiristas trabalham com escaletas mais detalhadas, uma fase já embrionária do roteiro. Nelas constam cabeçalhos, são descritas ações e pode ser feita menção a diálogos importantes, mesmo que ainda não estejam completos, nem na formatação do roteiro. Nesses casos, essa Escaleta já é bem próxima do roteiro e é utilizada como base para sua escrita.

Exemplo de um Trecho de Escaleta de um episódio da série Cidade dos Homens, retirado do livro Manual de Roteiro, ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e TV de Leandro Saraiva e Newton Cannito:

UÓLACE E JOÃO VITOR (ESCALETA)

SEQÜÊNCIA I: O Rio de Janeiro continua...

CENA 01 – VISTA DO RIO – EXT – DIA As vozes de UÓLACE (Laranjinha) e JOÃO VITOR apresentam, paralelamente, o Rio de Janeiro a partir de cada uma de suas perspectivas.

SEQÜÊNCIA II: Alvorada no morro e no asfalto CENA 02 – BARRACO DE UÓLACE – INT – DIA Sonho de Uólace. Paranóia de que está sendo perseguido por traficante

CENA 03 – BARRACO DE UÓLACE – INT – DIA Uólace acorda e vai descrevendo, voz off, seu cotidiano, em que lhe falta tudo. Inclusive a mãe, que viajou. “Escuta” a voz off da mãe proibindo que ele peça dinheiro na rua.

CENA 04 – APARTAMENTO DE JOÃO VITOR – INT – DIA Fazendo o paralelo com a cena anterior, JV narra em off o seu acordar. Apresenta o local onde mora (apartamento próximo à favela) e sua relação com a mãe, que espera dele um futuro brilhante. Reclama do pão com manteiga.

CENA 05 – BOTECO – INT – DIA Uólace reclama do pão com manteiga que um homem lhe pagou. Quer hambúrguer (como JV na seqüência anterior). Aceita o pão e agradece.

SEQÜÊNCIA III: Os fiéis escudeiros são apresentados CENA 06 – ESCOLA DE JOÃO VITOR – INT – DIA Em off, JV apresenta seu melhor amigo, Zé Luís. Apresenta também outro colega, Lucas. Descreve valores a partir dos amigos. “O Lucas não precisa torcer por um futuro glorioso, pois é podre de rico.”

CENA 07 – RUA – EXT – DIA Uólace, em off, apresenta seu melhor amigo, Acerola, e um colega, Duplex. Este o ensina a extorquir dinheiro dos transeuntes. Ouve novamente a voz off de sua mãe reprimindo-o. Por fim, não tem sucesso na extorsão. Os dois grupos (os dois garotos de classe média e os três da favela)encontram-se e encaram-se. Em off, Acerola e Zé Luís trocam insultos.

(intervalo)

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CARTÕES DE ÍNDICE

Outra opção , permite que você organize as cenas/sequencias escrevendo-as em cartões index ou mesmo papeis coloridos. Você pode dispo-los sobre a mesa ou grudar em uma parede. Em cada um dos cartões você escreve o cabeçalho da cena e com poucas palavras o que acontece nela. Para quem é mais visual, escrever a escaleta com Index Card é um método muito eficiente, pois permite visualizar a história e seus arcos. Também é mais fácil para rearranjar cenas, já que elas estão todas expostas ao mesmo tempo, o que muitas vezes não acontece na escrita corrida no papel.

No vídeo abaixo do canal do Youtube do Oscars, Dustin Lance Black ( roteirista de Milk e J. Edgar) fala sobre seu método de criação com Index Cards.

Outra possibilidade interessante desse método é separar index cards de cores diferentes, seja para marcar personagens envolvidos na cena ou para definir valores positivos ou negativos no arco do personagem, mais uma função visual que se ganha ao trabalhar com o método de cartões de índice .

Abaixo, no vídeo também do canal do Oscars, David Magee , roteirista de A vida de Pi e Em busca da Terra do Nunca, fala de seu método de criação utilizando post-its coloridos.

Hoje alguns softwares, como o Celtx, oferecem a escrita com Index Cards digitalmente, sem a necessidade de utilizar papéis físicos. Abaixo, imagem do AmazonStoryBuilder, site gratuito do Amazon Studios que oferece uma versão digital dos Index Cards que depois podem ser exportadas em um documento pdf.

STORYCLOCK

Recentemente, por conta de uma campanha do Kickstarter acabei conhecendo um método de escaletar que eu ainda não conhecia.

Seth Worley, um diretor de Los Angeles, lançou uma campanha no Kickstarter para financiar um caderno de ideias para escritores. A ideia é que o caderno fosse uma ferramenta que facilitasse a criação de estruturas paras as histórias. A campanha foi um sucesso, e a simplicidade da proposta me deixou curiosa sobre sua eficiência.

Pesquisando um pouco mais, descobri a ideia não exatamente inédita, pelo contrário já é muito utilizada no processo de estruturação de muitos profissionais. As vezes é referenciada como Story Clock e as vezes como Plot Clock.

A proposta é simples. Em um círculo se dispõe como em um relógio, os pontos equivalentes a divisão dos atos e dentro de cada um dos atos se coloca pontos equivalentes a situações ou cenas.

O formato circular, ajuda visualizar a trama, seu desenvolvimento ao longo do tempo e encontrar pontos geometricamente opostos, permitindo utilizar esses momentos a favor da trama, por exemplo, criando pontos altos e baixos no arco emocional do personagem ou simplesmente para plantar e recompensar pistas. Utilizei o método recentemente como estudo e gostei da simplicidade do processo e dos resultados.

ALGUNS ROTEIRISTAS NÃO TRABALHAM COM ESCALETA?

Sim, alguns roteiristas são famosos por afirmar não utilizar escaletas ( Charlie Kaufman é um dos que diz que raramente as utiliza). Escrever livremente é um método que pode funcionar para alguns, mas para a maioria também é o que costuma ocasionar aqueles bloqueios criativos que impedem que o trabalhe avance. Se você prefere escrever sem passar pela escaleta, ótimo, mãos a obra.

Se você se encontrar parado em algum ponto, simplesmente volte para essa etapa e tente descobrir a sua história definindo sua estrutura, a escaleta é justamente isso, um gabarito do quebra cabeça que você precisa montar. Ver o gabarito no lado oposto da caixa não garante que ninguém conseguirá montá-lo, nem elimina o trabalho da montagem. Da mesma forma no processo de roteirizar, a escaleta é guia que ajuda na montagem, te mostrando que imagem é essa que você deve montar.

O OUTRO LADO DA MOEDA

Entretanto, uma coisa deve ser dita a respeito da Escaleta. Se de um lado, alguns não a utilizam e correm o risco de se perder na escrita, outro risco é que a escaleta acabe sendo mais importante do que o roteiro.

Lembre-se, roteiro é um processo vivo e orgânico. A Escaleta não deve limitar, ela deve estruturar. E o roteiro não é só estrutura, são as cenas, o desenvolvimento dos personagens, os diálogos. Um problema muito recorrente de quem se apoia excessivamente na Escaleta é que a estrutura acaba sendo mais importante que o todo.

"A ênfase geral (e equivocada) na trama e estrutura levou para um exagero no processo de escaleta. Muitos acreditam (foram ensinados ou leram isso) que eles precisam ter uma escaleta completa de suas histórias antes de começar a escrever cenas. Eu acredito que essa visão da escaleta é mais do que errada, ela pode ser destrutiva. Uma escaleta meticulosa pode dar a impressão falsa de plenitute; pode te induzir a escrever para a escaleta ao invés de a partir dela. Isso pode resultar em uma cena ou personagem que foi manipulado e tensionado para caber na forma ditada pela escaleta." - Guy Gallo

Pense em vários filmes de comédia recentes. Se nas décadas anteriores éramos entulhados de filmes de comédia que não tinham estrutura, eram esquetes reunidos durante duas horas, hoje temos filmes de comédia que se preocupam mais na estrutura, em levar os personagens do ponto A ao B, do que em nos fazer nos importarmos com os personagens ou simplesmente em serem engraçados. A estrutura é bem definida e coerente, mas não dialoga com o roteiro como um todo.

Então a escaleta deve ter a exata importância que lhe cabe, ela não é mais importante do que o roteiro, mas uma ferramenta eficaz para se chegar até ele. Nunca entenda que a escaleta é feita com mão de ferro. Ela deve ser flexível, permitindo que novas cenas sejam criadas, deixando espaço para o que naturalmente surge no processo de criação. Sua escaleta dizia que deveria acontecer tal evento, mas agora parece improvável que seu personagem tomasse tal ação? Deixe a escaleta de lado e escreva o caminho que sua história está naturalmente lhe guiando. Depois volte a escaleta e adeque ela ao seu roteiro. Corrija o que não faz mais sentido e siga em frente. A escaleta deve trabalhar a favor do roteirista e não o roteirista em favor da escaleta! É um processo constante de seguir em frente e voltar um pouco, quase como passar roupa, assim como Paul Thomas Anderson já disse.

É isso que irá permitir uma ferramenta que te guie e não te escravize.

PARA FINALIZAR

Escrever é um processo complexo, que exige muito e que pode não render quanto acreditamos. É um processo, sem fórmulas, mas com muitas etapas e processos. E as etapas são trabalhosas, porque escrever é um trabalho. E envolve não só descobrir a história, mas descobrir se você está no momento certo para contá-la. Paul Schrader afirma que a escaleta é algo que nunca nos faz perder tempo, pelo contrário nos faz ganhá-lo.

Escaleta de Touro Indomável feita a mão por Paul Schrader:

Entrevista de Paul Schrader, roteirista de Taxi Driver, a Ultima Tentação de Cristo, Touro Indomável, etc...

PERGUNTA: Você ainda faz a escaleta em uma página?

Paul Schrader: Sim. E então faço a escaleta de novo. Nesse projeto eu fui direto da escaleta para o roteiro. Mas normalmente, se eu tenho alguma preocupação se a ideia vai funcionar mesmo, eu passo para um esboço sequencial.

Um esboço sequencial é... digamos que um filme comum há por volta de 45 a 60 coisas acontecendo. Essa é sua escaleta, a lista de coisas que acontecem. Não é a lista de planos ou a lista de cenas e locações, só as coisas que acontecem. Por exemplo, eles se encontram no hotel, voltam para o escritório, fazem telefonemas, coisas assim.

Então você pega cada um desses itens em sua escaleta e transforma em um parágrafo. Então agora você está começando a incluir diálogos.

PERGUNTA: De cinco a oito linhas?

PAUL SCHRADER: Sim. Então agora, ao invés de uma escaleta de uma página, você tem um esboço de aproximadamente quinze páginas. E se sua ideia ainda sobreviver a tudo isso, então tem uma boa chance de funcionar. Eu já tive ideias que funcionavam durante a etapa de escaleta, mas que morreram na etapa do esboço.

E uma ideia morrer em suas mãos é uma das melhores coisas que poderia acontecer. Porque você acabou de poupar muito tempo e se safou de um enorme sofrimento. Algumas ideia simplesmente não querem ser escritas. Elas não querem ser escritas por você. Algumas ideia te enganam e te fazem acreditar que elas tem mais poderes do que de fato elas tem. Se você descobrir isso após escrever um primeiro tratamento, você terá desperdiçado muito tempo e também perderá a fé em você mesmo, porque você terá acreditado em algo e não alcançara o que queria."

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